O governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), mandou um alerta a quem tenta fazer “uso político” das Forças Armadas. “É fundamental que os militares lembrem que o verde, o azul e o branco do fardamento do Exército, Aeronáutica e Marinha identificam sua lealdade à Pátria, não submissão a partidos ou facções”, afirmou Dino em sua coluna na edição da revista Carta Capital deste final de semana. No artigo intitulado “Política Sem Farda”, o governador defendeu a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC) que restringe a participação dos militares da ativa na vida pública.
Dino defende no artigo que o governo Bolsonaro seria fruto do apoio institucional de militares e membros do Sistema de Justiça, extrapolando suas funções constitucionais. “O arranjo político que atualmente governa o nosso país é fruto dessas crenças retrógradas”, afirma, referindo-se ao Positivismo do século 19, que defendia que “homens iluminados” governariam o país de forma técnica e baniriam a corrupção da política. “O resultado é o oposto do que alegavam. Vemos a multiplicação de denúncias de corrupção no exato momento em que os recursos públicos deveriam estar direcionados para salvar vidas”, afirmou, citando as denúncias investigadas pela CPI do Senado, envolvendo inclusive militares.
Partido Militar atuante desde República Velha
Dino lembra que, desde os anos 1930, há estabilidade do serviço público no Brasil como forma de tentar garantir impessoalidade dos atos do Executivo. E defende que esse cuidado deve ser maior entre militares e juízes – seus ex-colegas de profissão, desde que Dino abandonou a magistratura para iniciar a carreira política. Entre os militares, pois exercem o uso da força, “empregado segundo procedimentos legais e em favor do bem comum dos cidadãos”. E os juízes pois são “responsáveis por determinar o cumprimento da lei”.
O mito da participação dos militares na vida pública brasileira como algo saudável para o país seria baseado no Positivismo do século 19, “que lançou militares à política desde a República Velha”. “As tentativas de supostamente anular os malefícios da política produziram governos autoritários, incompetentes para resolver os problemas nacionais e manchados pela ilegalidade, do começo ao fim”, afirma.
Leia abaixo a íntegra do artigo:
Não usem a farda para fazer política!
Um dos acordos basilares do convívio em sociedade é que, como regra, o uso da força só é aceitável quando praticado por parte do Estado. Para que esse uso da coerção seja efetivamente legítimo, deve ser empregado segundo procedimentos legais e em favor do bem comum dos cidadãos. Em cada país, esse monopólio é exercido internamente pelas forças policiais, na garantia da segurança pública, e pelas Forças Armadas, na defesa da soberania nacional.
No Brasil, há uma triste tradição, desde a nossa formação, do uso para fins privados dos aparelhos de Estado. O livro Coronelismo, Enxada e Voto retrata como no início do século passado as forças policiais e as administrações públicas em geral eram usadas pelas oligarquias locais em benefício próprio. A raiz dos problemas relatados por Victor Nunes Leal, em sua clássica obra, é a quebra da impessoalidade do serviço público em favor de aliados e em perseguição a adversários.
Esse tipo de uso que se tentava atacar quando, na Era Vargas, a Constituição de 1934 instituiu a estabilidade funcional do servidor público mediante concurso. Cabe a esse servidor atuar de maneira impessoal em prol do interesse público, deixando de lado seus gostos pessoais e afinidades políticas.
Essa impessoalidade ganha ainda mais ênfase quando falamos de servidores que representam instituições de função repressiva. É o caso da Polícia e Forças Armadas. Mas também dos juízes e outros membros do Sistema de Justiça, responsáveis por determinar o cumprimento da lei no que se refere a sanções.
A Constituição Federal exige que essas instituições de Estado sejam apartidárias e não se vinculem a blocos de poder, em face da natureza de suas funções. O artigo 142 da Constituição Federal subordina os militares aos poderes constitucionais e impede a filiação partidária dos servidores da ativa. Uma Proposta de Emenda à Constituição da deputada Perpétua Almeida estende corretamente essa vedação à ocupação de cargos civis da administração pública. No caso da Justiça, a Constituição também veda sua atuação política. Quando um juiz usa da toga para atingir objetivos ligados a projetos de poder está corrompendo o Judiciário.
Esse exemplo, relativo aos juízes, serve para lembrar que na prática da vida política brasileira grassou uma triste contradição. Perdura há mais de século a crença de que para vencer os males do patrimonialismo seria necessário arregimentar “homens iluminados” que baniriam a corrupção da política. Esse ideal, presente no Positivismo, é que lançou militares à política desde a República Velha. Atuaram nesses momentos como partido político, o Partido Militar. O resultado, a História nos ensina. As tentativas de supostamente anular os malefícios da política produziram governos autoritários, incompetentes para resolver os problemas nacionais e manchados pela ilegalidade, do começo ao fim.
O arranjo político que atualmente governa o nosso país é fruto dessas crenças retrógradas. Tanto em quartéis quanto em tribunais brasileiros, um pequeno segmento resolveu se atribuir o papel de “regenerar” a política, em uma pretensa salvação nacional. O resultado é o oposto do que alegavam. Vemos a multiplicação de denúncias de corrupção no exato momento em que os recursos públicos deveriam estar direcionados para salvar vidas. Tais casos de corrupção, conforme a CPI do Senado vai revelando, são gravíssimos, envolvendo bilhões de reais em esdrúxulos itinerários, com a participação de empresas esquisitas, intermediários sem qualificação e altos escalões administrativos, onde se destacam inclusive militares.
O uso político do Judiciário ou das Forças Armadas representa uma intervenção indevida no sistema democrático. As instituições que devem se submeter ao regime constitucional passam a atuar como corporações na tentativa de burlar o voto popular. Foi o que se viu com a atuação parcial de um juiz que influiu diretamente nas eleições presidenciais de 2018 por meio de suas decisões, depois anuladas pelo STF.
Por tudo isso, é fundamental que os militares lembrem que o verde, o azul e o branco do fardamento do Exército, Aeronáutica e Marinha identificam sua lealdade à Pátria, não submissão a partidos ou facções. O verdadeiro antídoto para a corrupção é a transparência e o princípio da legalidade. E a melhor vacina para delírios autoritários é o voto popular, sem fraudes de nenhum tipo, inclusive oriundas de instituições de Estado.