Em 2022, de acordo com IBGE, o acumulado da inflação nos últimos 12 meses chegou a 12,47% – o maior índice desde novembro de 2003. De acordo com o economista e professor da Universidade Federal do Maranhão, Felipe de Holanda, o Brasil encontra-se em estado de “estaglafação”, uma combinação de inflação em alta e estagnação econômica.
O economista ainda critica as ações de desmonte institucional realizadas pelo Governo Bolsonaro que castiga ainda mais a população mais pobre do país. Segundo Felipe, a inflação tem um peso dobrado sobre o trabalhador brasileiro.
Sobre o Auxílio Brasil, Felipe de Holanda pontua que o alcance do programa não atende a demanda de brasileiros que necessitam do auxílio e que isso afeta, em sua maioria, mulheres e crianças.
Ainda para o economista, para o Brasil se recuperar deste cenário econômico é necessário uma reestruturação produtiva que seja capaz de libertar forças que criem empregos.
- BolsoCaro: inflação em março é a pior desde 1994, retrocesso de 28 anos
- Pobres são os que mais sofrem com alta da inflação, diz IPEA
- Inflação provocada por política econômica de Bolsonaro afeta famílias mais pobres
Há dados de que a fome no Brasil está superior à média mundial. A que se deve isso?
São vários fatores combinados. Em primeiro lugar, uma recessão seguida de uma estagnação. Desde 2015 até aqui, foi a maior contração do PIB do período republicano. É como se nós tivéssemos aberto um alçapão. Não saímos de lá ainda, né? Então, a renda per capta do brasileiro está 10% abaixo da renda média que se encontrava em 2014. Então, esse é um aspecto importante. Há também uma série de mudanças institucionais no mercado de trabalho que, sem dúvida nenhuma, tiveram impacto principalmente nos rendimentos da parcela mais pobre da classe trabalhadora, daqueles que são precários, que são informais, que hoje nós chamamos de economias de aglomeração. Trata-se do comércio, serviços, construção civil. A verdade é que o emprego se recupera, a ocupação se recupera, mas ainda há muita gente que não está na estatística de desemprego, que não voltou ao mercado de trabalho, o que chamamos de desemprego oculto pelo desalento. A própria Pnad contínua estima em mais de 1 milhão de pessoas. Então, tudo isso contribui para deprimir o nível salarial. Ainda há tensões inflacionárias, essas são de âmbito mundial. Elas têm a ver com esses dois choques de oferta enormes que aconteceram e, em primeiro lugar, a pandemia, que teve um impacto em desorganizar as cadeias globais de suprimento, o que provocou impactos inflacionários. E em segundo lugar, a guerra da Ucrânia e a invasão da Ucrânia pela Rússia, que tirou do mercado dois importantes fornecedores ou limitou fortemente dois importantes fornecedores de grãos, de minérios, de fertilizantes. Isso tudo tem um impacto inflacionário em termos mundiais.
A gente vê agora a Europa reduzindo as compras de gás, de petróleo da Rússia e substituindo por produção norte americana. O Brasil certamente é beneficiado nesse sentido de ter preços mais altos, porque ele é um produtor de petróleo importante, além de ser o maior exportador de soja e maior exportador de carne. Então, esse vetor inflacionário no Brasil? A nossa inflação acumulada nos últimos 12 meses, ela está superior a 12%, maior do que a média da inflação mundial. E aí tem causas internas também. Nós temos um problema de uma oferta que não se expande, graças a um investimento muito baixo. Essa é a proeza de uma crise em um país capitalista. São os investimentos que ficam deprimidos por um tempo longo e investimentos de manutenção fundamentais, por exemplo, para as estradas, para determinados equipamentos, por exemplo, portuários. Tudo isso tem um impacto na estrutura de oferta do país. Além disso, nós somos muito dependentes da importação de combustíveis, apesar de sermos exportadores de petróleo. Ainda há a falta de política de segurança alimentar nesse país. Nós estamos vendo pela segunda vez problema, por exemplo, na área do arroz.
Lembro que no final de 2020 o Brasil estava exportando arroz quando estava faltando arroz no mercado interno. Isso é um absurdo, porque o arroz faz parte da base da segurança alimentar do povo brasileiro. Então, nós temos a combinação do aumento do preço dos alimentos, com o aumento do preço dos combustíveis e aí vira cadeia, porque a nossa produção alimentar transportada em caminhões depende de diesel. Além disso, temos aumento de preço de fertilizantes. Nós éramos muito dependentes da Ucrânia e da Rússia, isso tem um impacto sobre preço e, portanto, temos um cenário inflacionário. Não, não apenas de uma inflação elevada, mas uma inflação que vai se manter ainda elevada por um tempo por causa de novas pressões na área dos combustíveis e na área dos alimentos.
Só para você ter uma ideia, a inflação média dos últimos 12 meses é mais ou menos 12%, o hiper real, a média do índice. Mas a inflação de alimentos está subindo, que nem um foguete vai na direção dos 20%, mais uma vez onde já esteve no acumulado de 12 meses. O custo de manutenção de casa, ou seja, a inflação dos pobres no Brasil, está mais ou menos o dobro da inflação média oficial. E aí a gente tem, sem dúvida nenhuma, o aumento da inflação corrói o poder de compra dos trabalhadores e traz à tona o fenômeno da fome.
O desmonte de políticas públicas que promoviam o acesso do brasileiro à alimentação pode agravar ainda mais este cenário?
Sem dúvida nenhuma. Nós precisamos reverter o desmonte institucional que é realizado pelo governo Bolsonaro. Não tenho dúvida nenhuma de que contribui muito. Contribui também a política ambiental, que se pode chamar de política ambiental, de destruição na área do meio ambiente, que complica também de uma forma séria, a posição do Brasil como exportador de alimentos. Porque nós, por exemplo, a entrar no mercado europeu, você precisa ter práticas, selos, práticas sustentáveis em vários mercados, por exemplo, a Alemanha. A gente sabe da importância do uso do Partido Verde, da consciência ambiental que eles têm, e isso, sem dúvida nenhuma, está prejudicando exportadores brasileiros de alimentos, de commodities agrícolas.
O custo de vida tem variado muito de um mês para outro, o preço dos alimentos nas prateleiras do supermercado também. A que se deve esta variação? Porque o Brasil, reconhecidamente como um dos maiores produtores agrícolas do mundo tem enfrentado esta problemática?
Pode-se dizer o seguinte nós estamos sofrendo dois choques de oferta mundiais que afetam, sem dúvida nenhuma. O preço dos alimentos não apenas diretamente por causa do mercado de commodities, mas também por causa dos custos de transporte. E nós temos um governo que só está trabalhando na função do modelo primário exportador, na base da grande produção mecanizada. Os itens básicos da alimentação do brasileiro não vêm do agronegócio. O chamado agronegócio primário exportador vem da produção familiar.
Alguns estudos apontam que o valor do Auxílio Brasil é insuficiente para a compra de uma cesta básica, a maioria dos brasileiros questionam o valor do benefício. Isso pode agravar ainda mais o cenário da fome no país?
Mais do que o valor insuficiente que eu considero, embora ele tenha tido um reajuste em termos reais em relação ao que era pago no programa Bolsa Família, a gente vê que ele que há retrocessos no desenho do programa, no sentido de se adequar ao tamanho das famílias. Ele é um benefício praticamente linear. Ele tem algumas composições para tamanho de família e tal, mas ele, na verdade, está muito próximo da média para todas as famílias. Então, você pega, por exemplo, o ambiente que tem famílias que têm quatro ou mais pessoas. Elas são mais de quase 40% do total de famílias, enquanto que as famílias unicelulares, aquelas que têm, digamos, 20%, estão recebendo a mesma coisa. Há também diminuição das condicionalidades no sentido de presença na escola, no sentido de controles de vacinação de saúde.
Além disso, mesmo tendo subido de cerca de 13 milhões de famílias quando estava lá, em meados de 2014, para 18 milhões de famílias, agora, a verdade é que a pobreza e a fome no Brasil avançaram muito mais rápido e a gente sabe que a fila para se conseguir esse benefício é grande. Uma reportagem da Folha de São Paulo aponta que em mais de 1000 municípios do país formaram-se filas substanciais de pessoas que são elegíveis, estão no CadÚnico, estão com insegurança alimentar, estão precisando e não simplesmente estão na fila de espera, não vão receber e isso preocupa muito. Um dos dados da pesquisa Gallup, que foi realizada em 160 países sobre a questão do número de pessoas em segurança alimentar mostra que no Brasil houve uma mais do que a duplicação do número de pessoas. Em 2014, mais ou menos 17% da população tinha segurança alimentar, o que tinha garantido ao país naquele momento a saída do chamado mapa da fome mundial. Hoje nós vemos 37% dessas famílias em situação de insegurança alimentar, que é superior à média mundial, que é 35%. Mais preocupante que isso, mulheres são 47%. As mulheres são mais afetadas e as pessoas entre 20 e 39 anos são um número elevado. E neste caso, principalmente o núcleo da idade reprodutiva. Então a gente sabe que tem crianças sendo mal alimentadas. O impacto é gigantesco sobre o futuro dessas crianças no futuro desse país.
Recentemente, o senhor pontuou que o Brasil se encontra em um cenário de estagnação econômica. Como o país pode sair deste cenário? Em quanto tempo em média o país demorará para recuperar a economia?
Tem um nome para essa, essa doença esquisita que é inflação mais estagnação, chama-se estagflação. A verdade que nós estamos nisso. O mecanismo da política monetária tem uma resposta automática para a elevação da inflação e que é o aumento do juro. Se nós praticamos um aumento da taxa básica de juros violentíssima, saindo de 2%, onde ele estava durante a pandemia para agora 12,75% e o mercado espera pelo menos mais um reajuste, mais uma elevação. Isso certamente tem um impacto enorme sobre o crédito e não apenas sobre o investimento, mas também sobre o consumo. Então, o que nós vemos a partir do final do segundo semestre e no ano que vem é um sangue, suor e lágrimas, como diria Winston Churchill. Porque esse ano todas as esferas de governo anteciparam gastos, ampliaram gastos, aumentaram o desequilíbrio fiscal por causa da questão eleitoral. E quando esses estímulos saírem por perto da eleição, nós vamos ver que, na verdade, nosso pibinho continua brochado, como diz o Paulo Guedes, o atual ministro da Fazenda.
Não tenho dúvida nenhuma que o Brasil é um ganhador dessa guerra que está havendo, porque ele é um grande produtor de commodities agrícolas e minerais e mesmo um produtor de petróleo. E o país, nesse sentido, vai bem. As exportações bateram recordes, estão batendo recordes e devem continuar bastante aquecidas, até porque o mercado interno, inclusive por causa dessa subida de juros, está bem restrito. Então um excedente exportava, é grande, mas o povo não está nem se alimentando direito. Então, nós precisamos ter não apenas uma política industrial, mas uma reestruturação produtiva que seja capaz de libertar forças que criem empregos. Não estou falando de emprego da carteirinha verde amarela, que na verdade é precário. Estou falando de empregos industriais em serviços mais especializados. Para isso, é preciso ter um projeto de país, as oportunidades que são criadas pelo atual sistema e pelo atual choque de oferta estão acontecendo pelo fato de que estamos vivendo um processo de desmobilização, no qual o fornecimento, suprimento de componentes industriais e de mercadorias passa a se guiar por critérios geopolíticos também. E isso abre espaço para o Brasil para ampliar ainda mais o seu dragão exportador.
Mas não é suficiente, como eu disse, pra você resolver os problemas de pequenez, de exclusão de ampla parcela da população do mercado de consumo é necessário um pacto de elites e de apoio popular para que ele possa se desenvolver. Por exemplo, um dos aspectos centrais diz respeito à nova economia da saúde ou ao complexo industrial da saúde.