É evidente, e não vê quem se compraz com o fato: quanto mais crescem as possibilidades eleitorais de Lula, mais se ativam os movimentos de setores das classes dominantes para cooptá-lo. Embora, registre-se, os ensaios de programa do PT, formulados pela Fundação Perseu Abramo, think tank do partido, não deixem de embalar uma candidatura palatável ao mercado.
(Não sei por que, de repente veio-me, sei lá de que associação de ideias, uma antiga propaganda da Bozzano que dizia: Luz, mais luz… está no ponto. Pois é, quando as concessões da esquerda estarão suficientemente cintilantes, no ponto, para que recebam o nihil obstat do tal centro e mesmo da tal centro-direita?)
Longe de mim qualquer ideia temerária, propostas desajuizadas, insustentáveis. Mas, também, que vade retro, às favas a tibieza, o medo, a prudência excessiva que se confunde com a covardia. Aristotelicamente, devemos buscar um projeto-meio que represente -isso sim! – os interesses das classes e dos setores de classes desvinculados do grande capital, especialmente do capital financeiro e das corporações transnacionais. Um projeto-meio para ser chamado de nosso, brasileiro, democrático e popular.
Não posso acreditar que incorramos na Carta aos Brasileiros 2.0, ainda mais nessas circunstâncias absolutamente anômalas, babélicas, radicalizadas pelo teto de gastos, pelas reformas trabalhista e previdenciária, pelo desemprego, pela precarização extrema do trabalho, pelo aumento da pobreza e ressurgimento do espectro da fome, pelas privatizações, pela entrega do pré-sal, pela destruição da Petrobrás e da Eletrobrás, pela queima da Amazônia, pela renúncia em regra à soberania nacional e pela emergência de uma direita despirocada, primitiva e autoritária.
Fico atônito com essa falta de ambição, com essas ideias medianas, com esse trivial variado (e ordinário), com a repetição de propostas de tiro curto, simples traques, para enfrentar a, talvez, mais grave crise da civilização brasileira.
Nesses últimos anos cinco anos, as elites não tiveram qualquer constrangimento em apertar ao limite o torniquete da superexploração, do empobrecimento e da marginalização de mais de cem milhões de brasileiros. E nós vamos perguntar para banqueiros, rentistas, mídia monopolista, grandes corporações nacionais e globais se isso ou aquilo agrada-os ou é muito radical?
Antes de tudo, antes de ouvir e abraçar as massas de deserdados, antes de ajustar com elas o pagamento das contas de séculos de exclusão, desigualdade e violência, antes disso, é preciso acenar e fazer concessões?
É nesse ponto que alguém pede um aparte e diz: você está sendo injusto, porque estão lá, também, em nossas preocupações e propostas, os trabalhadores, os pequenos agricultores, os pobres, os famintos, os sem casa e sem-terra, os sem diploma, os à margem do consumo, a classe média empobrecida. Respondo: claro, concordo: tudo isso, e mais um pouco, é muito bom. Mas, desde quando mexe, sacode, abala e derruba a ossatura que sustém uma das mais excludentes, incivilizáveis, mesquinhas e vampirescas das sociedades de classes desse nosso planeta?
Nunca entrei nessa conversa de exigir da esquerda, especialmente do PT, que faça autocrítica. É uma saída fácil -e quase sempre oportunista- de encobrir os próprios deslizes. Mas, não custa examinar, com isenção, mente aberta e sinceridade, o que fizemos e aprender com os próprios erros. Reprisá-los é imperdoável.
Tudo ou quase tudo o que os governos do PT concederam aos trabalhadores, aos mais pobres, às massas populares e à classe média baixa, dissolveu-se no ar. Foi uma brisa passageira. Assim como se esfumaram algumas medidas econômicas de grande correção, estimulando o desenvolvimento nacional e resguardando a nossa soberania.
Mas, o anel que tu me deste, era vidro e se quebrou.
E daí, companheiros, bis repetita? Pela segunda vez o mesmo roteiro, acendendo velas aos pobres e a mamon? E o que haverá de prevalecer, de ficar, de sólido: as três refeições diárias ou o engordamento das contas dos rentistas?
Nessa longa, trágica e vergonhosa história da superexploração, exclusão e massacre das massas populares brasileiras, incluindo-se aqui o genocídio dos negros -que se transformou em um crime continuado, sem fim- foram poucos os momentos de algum conforto para os mais pobres.
Momentos de conforto, não mais que isso, foi o que demos ao longo dos séculos, episodicamente, para os trabalhadores. É isso que estamos propondo repetir?
As classes dominantes e as classes médias que as servem, no Parlamento, na mídia, no Judiciário, no Executivo, encaram a miséria, a exploração e a marginalização de dezenas de milhões de brasileiros como naturais, normais, próprias, características de nossa sociedade, parte da paisagem do país. E quando a esquerda, aos invés de ir às causas, às famosas raízes do problema, ao busílis da questão, como diria o mestre Florestan Fernandes, propõe medidas paliativas, compensatórias ela também naturaliza, normaliza, banaliza os crimes da desigualdade, da violência, da marginalização, da entrega de nossas riquezas, da abdicação à soberania nacional e da possibilidade de se construir um país desenvolvido, próspero, solidário e justo.
Enfim, o que eu queria dizer era isso: ou a gente bota o dedo na ferida ou tudo será como antes, amém.