Como o Estado mais pobre tem a menor mortalidade do país? Esta é a pergunta da matéria de Thais Bilenky, publicada na revista Piauí em 16 de abril. Mas, não é a primeira vez que a questão se apresenta. Em março deste ano, o comentarista do SportTV, Sérgio Xavier Filho, divulgou no Twitter o gráfico da mortalidade por Estado e perguntou “algum especialista da área consegue explicar por que o Maranhão está com uma taxa de mortalidade tão mais baixa do que a média brasileira?”. Entre as várias explicações à publicação, leigos e especialistas, nordestinos e sudestinos enxergam o Maranhão como um “ponto fora da curva” na resposta à pandemia.
Em 28 de abril de 2021, o Maranhão se mantinha com a menor mortalidade do país, 101 óbitos por 100 mil habitantes, enquanto a média nacional era de 188 óbitos por 100 mil habitantes e o pior Estado, o Amazonas, já acumulava 303 óbitos por 100 mil habitantes. A despeito de ser um dos Estados mais pobres da federação e com histórico de indicadores socioeconômicos negativos, o Maranhão sustenta a menor mortalidade do país há meses. Neste texto apresentamos algumas hipóteses para explicar os resultados do Estado no enfrentamento à pandemia e delineamos um panorama da situação atual.
Muitos atribuem este resultado à subnotificação, existente em todos os Estados brasileiros. Mas, diferente do que o senso comum pode achar, os resultados têm explicação e são passíveis de investigação científica. Argumentos desavisados reduzem a unidade da federação ao seu histórico de pobreza, como se a limitação de recursos econômicos determinasse uma limitação de capacidades são, além de bastante enviesados, preconceituosos.
Primeiro, é preciso contextualizar o SUS no Maranhão. Desde o primeiro mandato de Dino, iniciado em 2015, o processo de expansão e descentralização da rede de saúde pública foi implementado levando em conta uma herança oligárquica: a oferta de serviços concentrada de maneira desigual na capital São Luís. Um aspecto importantíssimo nesta descentralização foi a criação de hospitais macrorregionais, estruturas hospitalares de média complexidade e que em 2020 mudaram o seu perfil de atendimento para comportar a demanda específica do coronavírus. A adaptação destes hospitais, o aproveitamento dos recursos humanos já em funcionamento e a sua localização permitiu que a população do interior do Estado fosse atendida na respectiva região, desafogando em grande medida a demanda da capital, que durante meses foi o epicentro da pandemia no Estado.
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Um segundo fator pertinente diz respeito à administração destas unidades hospitalares, em sua maioria pela EMSERH (Empresa Maranhense de Serviços Hospitalares), órgão criado para administração direta da assistência à saúde, que terminou por impulsionar uma resposta capilarizada dentro de um território extenso e geograficamente desafiador. Ao contrário do que muitos possam imaginar, existem estradas pavimentadas no Maranhão, que ligam os 217 municípios, mas a complexidade de cenários, diferentes relevos e realidades epidemiológicas impõem um desafio não tão simples de se equacionar. Desde à região pré-amazônica até a baixada maranhense, desde o litoral (segundo maior do país) até o semi-árido, equacionar estratégias numa área de 331.983 km² não parece uma tarefa simples.
Terceiro, a gestão estadual implementou estratégias inovadoras na assistência à saúde: ambulatórios externos para triagem, transferência aérea de pacientes, organização de uma rede regionalizada de leitos para Covid, sistema de regulação unificado, atuação da Força Estadual de Saúde em localidades de grande demanda ou baixa capacidade hospitalar. Mas, também, inovações na própria gestão da pandemia: o estabelecimento de um gabinete de crise na Secretaria de Saúde e o monitoramento diário de indicadores e processos de trabalho das principais frentes, como testagem, ampliação e ocupação de leitos, e, posteriormente, vacinação.
Em entrevista, o secretário Carlos Lula ressalta um argumento que, observado com atenção, pode ser um fator explicativo interessantíssimo. Ao contrário da maioria dos Estados, as Unidades de Pronto-Atendimento (UPA) do Maranhão, não são de gestão municipal, mas sim, estadual. Teoricamente, casos de suspeita de Covid deveriam procurar primeiro Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde deveria ser disponibilizado testagem e orientações sobre isolamento e rastreamento de contatos para interrupção da cadeia de transmissão. Porém, o cenário em boa parte dos municípios brasileiros é de fragilidade da Atenção Básica, muitas UBS deixaram de funcionar no começo da pandemia, suspendendo inclusive atendimentos de rotina como consultas de pré-natal. Diante da incapacidade de resposta das UBS, a população busca a porta de entrada aberta, UPAs e hospitais.
No Maranhão, a gestão da maioria das UPAs é estadual, portanto, há uma centralização da informação sobre demandas nas portas de entrada de Covid, o que permite um monitoramento diário, um termômetro de qual o perfil do paciente de Síndromes Respiratórias por região. Esta informação tem utilidade quando existe organização da gestão para reordenamento e alocação de recursos de acordo com o nível de pressão sobre o sistema de saúde. Além disso, quando há disputa política entre município e governo estadual, o ruído na comunicação sobre qual o tamanho da pressão sobre o sistema de urgência coloca incertezas sobre as reais necessidades de implementação de mais leitos. Até agora, sabe-se que quanto maior for a pressão sobre a porta de entrada no atendimento-covid, mais leitos serão necessários.
Além destes pontos, é preciso lembrar que o Maranhão foi o primeiro Estado da Federação a adotar lockdown, em maio de 2020. Esta medida se mostrou eficaz na contenção do espraiamento do vírus para o resto do território, ainda que momentaneamente, e para que a gestão tivesse mais tempo na estruturação da rede de atendimento para Covid. Em 2021 o cenário econômico de pressão do empresariado e inexistência do auxílio emergencial, somado à atuação do Governo Federal, contrário à medidas de distanciamento social, e a baixa adesão da população, limita ainda mais a implementação de medidas mais rígidas.
Obviamente que os pontos levantados aqui não substituem a profundidade de um artigo científico, este texto, de sua parte, tem o propósito de levantar hipóteses e apontar caminhos a partir de uma análise descritiva de documentos mapeados junto aos órgãos de saúde do Estado do Maranhão, e de entrevistas com os operadores das políticas públicas. Além disso, cumpre o objetivo de desmistificar algumas nuvens que pairam sobre a atmosfera nacional, muitas delas de cunho colonial, de que não haveria nada digno nas províncias periféricas do Brasil, de que os rincões de Vera Cruz seriam compostos unicamente de selvagens domesticados, mandacarus, plantações de cana-de-açúcar e em alguns lugares, belíssimas praias. Existe burocracia pensante no nordeste brasileiro, para além da literatura de cordel, existem lideranças políticas no nordeste, para além do mito de Lampião, e existem dados consistentes, experiências de gestão à disposição de outros Estados de como encarar o coronavírus de maneira responsável.
* Hesaú Rômulo, Doutorando em Ciência Política pelo IPOL/UnB e Professor de Ciência Política da UFT; e Ananda Marques, Mestra em Ciência Política pela UFPI
Texto originalmente publicado em Gestão, Política & Sociedade, do Estadão.